Depois de viajar
nostálgica e ludicamente no universo de Andersen com o espectáculo "O
rouxinol" e dos irmãos Grimm com os espectáculos "Pedrinhas de
luar" (Hansel e Gretel) e "Os três cabelos de ouro do
diabo", o desejo de continuar este percurso dentro das
infâncias e das memórias colectivas continua sempre vivo.
Reviver os grandes medos
da infância, deixar-se invadir com prazer pelos sobressaltos e sentir de
novo o grande arrepio:
"(…)E
pegando-lhe nos cabelos com uma das mãos e levantando o cutelo com a
outra, ia descarregar-lhe o golpe, quando a desventurada, volvendo para
ele os olhos amargurados…" (1)
Em toda a Europa, depois
da Idade Média até a nossa época, as bruxas, os ogres, os lobisomens e
outros mitos não deixaram, ao longo dos séculos, de fazer medo às
crianças. Estes personagens fantásticos que povoam nosso inconsciente
colectivo, animaram numerosas histórias muitas vezes aterrorizantes. O
"monstro" Barba Azul é uma dessas figuras míticas e
arrepiantes.
"… e esta
pequena chave, que é do gabinete que fica no extremo da galeria dos
aposentos do rés-do-chão, podes abrir todas as portas e percorrer todas
as divisões, só não poderás ir aí. Proíbo-te de tal modo que nem
imaginas como seria minha cólera se me desobedecesses."(2)
O Barba Azul conduzirá
o público, pequenos e grandes, ao coração do medo através deste conto
maravilhoso. Os intertextos dos irmãos Grimm, que também contaram este
personagem, ou os contos tradicionais, de França "O barba
ruiva" e o português "O colhereiro" vão
mostrar a universalidade deste mito e dotar o espectáculo de uma maior
densidade dramática.
A poética da
encenação terá como motivo a exploração das técnicas do contador de
histórias, isto é, como um só actor pode dar voz e imagem à
multiplicidade de personagens e ao papel central de narrador? Representar
alternativamente Barba Azul, sua esposa, sua irmã, seus irmãos, e
conseguir tornar sensível a sucessão de universos e de emoções que se
entrecruzam. Esta tarefa já era conseguida em "O rouxinol", em
que uma actriz e um músico recriavam, sem rede, os variados personagens e
atmosferas do conto de Andersen:
"O Rouxinol
(Quinta Parede) na nossa opinião o melhor dos espectáculos apresentados
nesta Bienal, pela simbiose perfeita entre o jogo de Tilike Coelho e
Teresa Mónica, acompanhamento musical, cenografia e figurinos. Uma
encenação de José Caldas, uma soberba "maîtrise"técnica e
poética."
Belverede - Lyon.
"Contar
histórias é a grande Paião do Português José Caldas. Com "O
rouxinol" ele encena com esplendor um dos célebres contos de
Andersen"
Laurent Digoin - Le
Progrés - Lyon
A cenografia essencial:
uma cadeira e o figurino do actor/contador, que se metamorfoseiam ao longo
do espectáculo criando personagens, espaços, emoções e atmosferas.
Potenciar o mínimo em máximo de expressão e sentido é o nosso desejo.
Como se do corpo do actor, da sua voz e das suas vestes emergisse todo um
universo múltiplo e único.
Depois as músicas
feitas do quase nada, voz e pequenos instrumentos percussivos, ruídos e
suspiros. As lengas - lengas e canções tradicionais transpostas
teatralmente -jogo privilegiado entre memória antiga e vivência
contemporânea.
E sobretudo o prazer
extremo de contar, neste jogo por excelência que é a arte, o teatro,
para os pequenos e grandes irmãos humanos.
Bruno Bettelheim em
"The Uses of Enchantment" (Psicanálise dos Contos de Fadas)
refere-se assim ao Barba Azul:
"Penso que para
a criança, boa parte do atractivo do conto é que ele confirma as suas
ideias de que os adultos têm segredos sexuais terríveis. O conto afirma
o que a criança sabe demasiado bem, por experiência própria: descobrir
os segredos sexuais é de tal forma tentador que até os adultos se não
importam de correr os maiores riscos. Mais: aquele que assim tenta os
outros merece o competente castigo."
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